Células nervosas Em:"Super Interessante", nº 23, Março 2000

QUANDO O INESPERADO ACONTECE

"Fui o primeiro caso na família...". É assim que Júlio dos Reis, um serralheiro civil de 53 anos, descreve, emocionado, a situação que o apanhou de surpresa.

Aparentemente, aquele era, para Júlio, mais um dia de trabalho. No entanto, o que poderia parecer uma jornada normal, iria, brevemente, transformar-se no início de uma batalha desgastante e difícil.

Pelas dez horas da manhã, após um esforço contínuo, foi "surpreendido por uma forte tontura". A esta, seguiu-se instantaneamente uma queda provocada por uma paralisia do hemicorpo esquerdo. De imediato socorrido por uma ambulância, Júlio foi encaminhado para o Serviço de Atendimento Permanente do Centro de Saúde de Góis e, dali, conduzido ao Hospital Universitário de Coimbra (HUC).

Sem nunca ter perdido os sentidos, Júlio deu entrada nas Urgências, onde, após uma observação cuidada, lhe foi diagnosticado um acidente vascular possivelmente originada por ruptura de um vaso sanguíneo.

Sendo um caso isolado na família, a propensão para problemas vasculares terá tido, certamente, génese em hábitos pouco salutares, tais como um consumo extremo de tabaco (60 cigarros diários).

Inconsciência é causa principal dos acidentes

Como Júlio dos Reis, muitos são os que padecem de um problema que vem afectando não só a sociedade portuguesa, mas também a europeia. Segundo especialistas, os acidentes vasculares cerebrais (AVCs) podem ocorrer em qualquer idade, mas são mais comuns após os 60 anos. As estatísticas indicam também que os homens são os mais afectados. Como explica Catarina Oliveira, directora do Departamento de Neuroquímica do CNC,  "na base de muitos destes mecanismos de lesão celular encontramos o "stress" oxidativo, isto é, a formação de espécies reactivas de oxigénio, para as quais temos, normalmente, defesas antioxidantes. No entanto, em determinadas circunstâncias, há um desequilíbrio. Nas mulheres os estrogénios têm um efeito antioxidante e protector. Daí que, até à menopausa, as mulheres sejam menos vulneráveis a este tipo de agressão" .

Os homens são mais afectados

A principal causa desta doença é, antes de mais, a não consciencialização dos riscos a ela associados. É, pois, necessário considerar, conforme afirma Catarina Oliveira, "as consequências nefastas que uma alimentação rica em sal, colesterol, enchidos ou fumados pode acarretar". O crescente "stress" diário, a diabetes, a hipertensão, o consumo de álcool e tabaco são igualmente responsáveis pelos inúmeros acidentes vasculares que têm ensombrado as nossas sociedades.

Evitá-los exige, sobretudo, que se actue ao nível da prevenção. Esta é, de facto, a melhor arma, uma vez que, quando a enfermidade se manifesta, o tempo de intervenção médica é fulcral. Somente após uma avaliação da extensão do acidente isquémico é possível a tomada de medidas que diminuam a deterioração celular. Todavia, quaisquer terapias aplicadas só surtirão um efeito benéfico quando ministradas até volvidas três a seis horas após o acidente.

Os sintomas mais frequentes

Como Júlio dos Reis, " a maior parte dos pacientes que se dirige aos serviços de urgência apresenta uma redução da força muscular, da motilidade e da sensibilidade, alterações da fala e desvio da comissura labial ", afirma Catarina Oliveira. Alguns pacientes podem encontrar-se ainda, consoante o local e a extensão da lesão, inconscientes.

Passada a fase crítica, na qual o repouso é essencial, a estimulação afectiva e motora é de extrema importância, na medida em que incute uma participação activa e saudável no paciente. O apoio familiar revela-se então indispensável numa recuperação eficaz e no retorno ao estilo de vida perdido.

No presente momento, Júlio encontra-se no serviço de neurologia do HUC, onde as melhoras se tornam cada vez mais evidentes. Não obstante o infortúnio, encara a vida de uma forma positiva e optimista. A dedicação e o empenho do pessoal médico, paramédicos e familiares ofereceram-lhe um reconforto e um incentivo que exortam a força de vontade e o desejo de ultrapassar quaisquer obstáculos. As sessões diárias de fisioterapia são um importante reforço na recuperação. Por isso, é com ansiedade que Júlio as espera, dizendo, de forma empolgada, " já só faltam 5 minutos para a fisioterapia. "

Trabalho realizado pelo grupo da  Escola Secundária Infanta D.Maria (Coimbra)

Apoio e revisão científica de João Malva, investigador do  Centro de Neurociências de Coimbra