Cientista Português Explica Movimento Estranho de Mercúrio

Mercúrio tem um movimento invulgar: por cada três voltas exactas que dá sobre si próprio completa duas órbitas ao Sol. A estranheza está na exactidão com que o faz. Não são três voltas e um bocadinho sobre o seu eixo para duas órbitas ao Sol, por exemplo. Só em 1965 este movimento foi descoberto e, desde aí, não se sabia explicar por que o planeta não evoluiu para algo como existe entre a Terra e a Lua, que mostra sempre a mesma face aos terráqueos. O astrofísico português Alexandre Morgado Correia e o orientador da sua tese de doutoramento, o francês Jacques Laskar, dão hoje uma explicação na revista "Nature".

Quando Gordon Pettengill e Rolf Dyce, da Universidade de Cornell, nos EUA, descobriram a forma como Mercúrio rodava, usando o radiotelescópio de Arecibo, em Porto Rico, foi uma surpresa. "Nunca se tinha observado no sistema solar", diz Alexandre Correia, de 28 anos, professor convidado na Universidade de Aveiro e investigador do Observatório Astronómico de Lisboa. "Foi o último planeta do qual se descobriu a rotação."

Há motivos para a descoberta ter sido tardia. Mercúrio está muito perto do Sol, por isso só pode ver-se pouco antes do nascer ou logo depois do pôr do Sol. Tanta proximidade também o ofusca e complica o envio sondas. Até hoje, só foi visitado pela Mariner 10, dos EUA, em 1974.

Muito há assim para desvendar sobre o planeta que tem o nome do mensageiro dos deuses, na mitologia romana, cujas sandálias aladas lhe permitiam viajar velozmente. Só se conhece 45 por cento da superfície deste planeta sem atmosfera, repleto de crateras, escaldante na face iluminada, até aos 430 graus Celsius, e gelado na face sombria, até aos 170 graus negativos.

Até à descoberta da rotação de Mercúrio, pensava-se que rodava sobre si próprio como a Lua, segundo previsões do astrónomo italiano Giovanni Schiaparelli, em 1889. Como Mercúrio está muito perto do Sol, Schiaparelli previu que sofreria os mesmos efeitos que a Lua - os efeitos de marés, devido à atracção gravítica, que provoca deformações nos corpos - e isso ter-lhe-ia abrandado a rotação até chegar a um equilíbrio. Qual? "Previu que Mercúrio virava sempre a mesma face para o Sol, tal como a Lua para a Terra. Isto chama-se a rotação síncrona."

Quando a rotação é síncrona, diz-se que existe um equilíbrio rotação-órbita 1/1, o que significa que o tempo de uma rotação é igual ao de uma órbita. No caso da Lua, demora 27,3 dias a dar uma volta sobre si própria e o mesmo a fazer uma órbita à Terra. Todos os grandes satélites naturais de outros planetas, como Io, Calisto ou Europa, de Júpiter, têm uma rotação síncrona.

Ora, Mercúrio tem um equilíbrio rotação-órbita 3/2, o que quer dizer que por cada três rotações faz duas órbitas ao Sol. Um dia em Mercúrio tem, então, 59 dias terrestres e um ano vale 88 dias. "O que é estranho é ser exactamente 3/2", diz Alexandre Correia. Isto revela que é pouco provável que varie. "Mercúrio chegou a um ponto de equilíbrio."

A um estado de equilíbrio chegaram ainda Vénus, Plutão e as grandes luas do sistema solar. O mesmo não pode dizer-se da Terra. "A rotação da Terra está a variar. Roda cada vez mais devagar, por isso o dia está a aumentar dois milissegundos por século. Há 400 milhões de anos, o dia na Terra tinha 22 horas."

Daqui a alguns milhares de milhões de anos, a Terra deverá demorar 56 dias a dar uma volta sobre si própria. Um dia na Terra valerá então 56 dias, em vez das actuais 24 horas. Mas tamanho tédio nocturno e diurno só ocorrerá perto do fim da vida do Sol, daqui a 5000 milhões de anos. Nessa altura, também a Lua estar síncrona com o nosso planeta.

Então, por que razão o movimento de Mercúrio já chegou a um ponto de equilíbrio e o da Terra não? "Mercúrio foi mais rápido, porque está mais perto do Sol", responde o astrofísico. E isso tem a ver com as marés gravíticas, um fenómeno semelhante ao que provoca as marés na Terra por causa da Lua, que faz com que os planetas rodem cada vez mais devagar sobre si.

Mercúrio foi abrandando a rotação, até completar uma em 59 dias. Quando se formou demoraria entre umas horas e dois ou três dias. Por que não continuou a abrandar a rotação, até completar uma volta sobre o eixo ao mesmo tempo que uma órbita ao Sol? Até agora, os modelos indicavam que a probabilidade de Mercúrio ter esta rotação era de apenas cinco por cento.

Alexandre Correia e Jacques Laskar, do Observatório de Paris, explicam como é que o movimento actual de Mercúrio é, afinal, o mais provável, segundo as simulações que efectuaram em computador. Mostraram que a rotação de equilíbrio de Mercúrio depende da excentricidade da sua órbita (as órbitas dos planetas são elípticas, e não circulares, e quanto mais elípticas forem, mais excêntricas se diz serem).

A solução do problema está na excentricidade da órbita variar ao longo da história de Mercúrio, devido às perturbações causadas por outros planetas, o que afecta a rotação - algo que Laskar anunciou em 1989. A excentricidade actual de Mercúrio, o planeta com a órbita mais elíptica depois de Plutão, é de 20,6 por cento.

Se a excentricidade for pequena, a rotação diminui até ficar síncrona; se maior é mais rápida. Ora é porque a excentricidade de Mercúrio varia entre zero e 50 por cento que, segundo os modelos, umas vezes a rotação diminuía e outras aumentava. Passaria várias vezes, e não só uma, pelo equilíbrio rotação-órbita 3/2, o que aumentou para 55,4 por cento as probabilidades de se manter nessa situação. Eis a explicação para Mercúrio andar como anda.

 

Por TERESA FIRMINO

Quinta-feira, 24 de Junho de 2004

" In Público "